sexta-feira, 12 de junho de 2015

Aldeia dos apiacás, abril de 1828


Hércules Florence, como desenhista da Expedição Langsdorff, durante os dez dias em que permaneceu junto dos apiacás, fez deles descrição, desenhos e aquarelas, apesar de estar, na ocasião, contaminado pela malária. Mais uma vez se destacava seu pioneirismo, pois ninguém antes dele havia produzido relato tão detalhado a respeito daqueles índios. Era a manhã do dia 11 de abril de 1828 quando os expedicionários desembarcaram na margem esquerda do rio Arinos, em Mato Grosso, onde se encontrava a maloca dos Apiacás que os receberam alegremente. Havia poucos dias que eles estavam ali atraídos por rio piscoso que corria nas proximidades. Tinham construído grande cabana coberta de sapé para a moradia de cerca de oitenta pessoas. No interior da cabana o grande número de redes de dormir, suspensas umas sobre as outras, eram distribuídas, de tal maneira, que sua presença impedia que se caminhasse entre elas.
Os apiacás eram de índole pacífica, muito dóceis, de estatura regular e bem feitos de talhe. Alegres e receptivos tinham a fisionomia menos selvagem e algumas jovens se assemelhavam às mulheres do sul da Europa. Sua pele não era tão acobreada, pois viviam sob densas florestas e em moradia espaçosa.
Eles se apresentavam em completa nudez e com o corpo avermelhado pelo urucum. Os homens, que cobriam o órgão genital com uma espécie de invólucro feito de folhas de pacova, traziam no rosto uma marca que era comum a todos eles e, espalhados pelo peito e pelo ventre, tinham desenhos em que predominavam quadrados e ângulos retos, paralelos entre si. Eles pintavam o corpo com o suco do jenipapo deixando que a cor escura permanecesse até que, após vinte ou trinta dias, se apagasse naturalmente. As mulheres desenhavam com o jenipapo listras pretas nos quadris ou nas pernas. Alguns apiacás, que se pintavam entre a cintura e os tornozelos, causavam a impressão de que vestiam calças pretas muito apertadas.
Para que fossem bem sucedidos na pescaria eles haviam fechado a embocadura do ribeirão com uma paliçada e no fundo dela fizeram buracos onde colocaram esteiras que deixavam retidas contra a correnteza. A presença dessa armadilha fazia com que a água subisse e transbordasse. Todas as manhãs vários índios embarcavam numa piroga para apanhar os peixes. Mergulhavam no local da armadilha e, trazendo à tona as esteiras, recolhiam os peixes à piroga que depois de alguns minutos já se encontrava abarrotada. Ao retornarem à maloca eles deixavam os peixes com as mulheres para o cozimento. Quando havia uma excessiva quantidade de peixes, as mulheres os assavam e, depois os secavam e socavam obtendo, através desse processo, a farinha de peixe que era ensacada e condicionada entre os mantimentos. Depois da pesca, os homens, durante o resto do dia, estavam livres para a confecção de arcos, flechas, enfeites ou permanecerem desocupados.
Outro encargo que cabia às mulheres era a preparação do camuí, bebida feita de milho. Duas mulheres, utilizando varas retas de quatro metros de altura, socavam no pilão o milho que depois era cozido em panela de terracota.
Os apiacás eram também hábeis na cestaria e usavam, em sua confecção, o vime ou o caniço. Os cestos, as joeiras e as peneiras eram trançados e arredondados com perfeição. Os descansos feitos de vime para panelas eram uma exclusividade deles. Outra de suas aptidões era a feitura de louça de argila cuja parede se caracterizava pela fina espessura. Sabiam tecer panos de algodão que empregavam em redes, braçadeiras e jarreteiras embora nada usassem como veste. Eram capazes de retirar a casca da árvore e, depois de empregar determinada técnica, fazer dela, rapidamente, uma piroga e, com a mesma rapidez, fabricar seus remos da guaitivoca que é espécie de taquara. Araras, papagaios e belas aves contribuíam para a confecção de seus ornamentos feitos de pena. Para produzirem seus enfeites usavam sementes, dentes e garras de animais.
Hércules, que não observou entre eles o menor indício de poligamia, anotou que viviam aos pares formados apenas de união amorosa tão duradoura quanto suas próprias vidas. As mulheres, que não eram escravas como ocorria entre os bororós, tinham maneiras agradáveis e a fisionomia jovial. No entanto, havia aquelas que se entregavam aos viajantes e que, sifilíticas, não pertenciam a ninguém.
Três dias depois, Hércules e seus companheiros de expedição seguiram até outra aldeia dos apiacás onde a principal habitação compreendia uma única choupana, muito ampla, coberta de sapé. Ali os índios criavam araras que, como eram em grande número e domesticadas, se empoleiravam na grande maloca e nas árvores das proximidades. Elas voavam para a mata, mas retornavam e os índios podiam levá-las para onde quisessem. A criação de araras tinha como finalidade o abastecimento de penas e carne. Havia, também, uma tulha feita de paus atravessados e bem unidos, com cerca de quatro metros e meio de altura e que continha provisão suficiente de milho para que cada um usasse de acordo com sua vontade.
Uma terceira aldeia de apiacás, localizada junto ao rio Juruena, foi alcançada alguns dias mais tarde, quando a expedição, prosseguindo seu trajeto, se dirigia ao Pará.
O sistema em que os apiacás viviam era caracterizado por uma igualdade sem restrições. E, assim, a todos eles pertenciam as plantações, as colheitas, os produtos de caça e pesca, as pirogas, os barcos, as esteiras e os utensílios, em geral. Apenas o arco, as flechas e os ornamentos, por exemplo, poderiam ser considerados como propriedade particular. Além do milho eles semeavam outros tipos de grãos e também plantavam mangaritos que, como escreveu Hércules , “ é raiz tuberosa como a batata inglesa, mas cujo gosto agradável faz supor que foram cozidos com manteiga ”. Depois da participação de todos, levavam até a cabana geral o produto da colheita que era ajuntado na tulha e de onde cada um poderia conseguir a quantidade que desejasse. A habitação era formada por uma única e grande choça, em que todos moravam, sem que qualquer um deles tivesse mais direitos do que os outros. O índio que se instalava na maloca da outra aldeia, ficava tão à vontade como se estivesse em sua própria moradia. De acordo com Hércules, como era ignorado o princípio da propriedade, isto fazia com que, entre eles, não houvesse os atos danosos que ocorrem nos meios civilizados e nem se via criminosos como: ladrões, assassinos e estelionatários.
A convivência com esses índios fez Hércules, vários anos depois de sua viagem, concluir que o homem podia ser feliz no estado selvagem; o impressionara o sentimento que cada um deles tinha pelos demais, enquanto que, na civilização, a filosofia dominante era que cada um cuidasse apenas de si.
A maneira de viver dos apiacás era, de acordo com Hércules, uma advertência para que se melhorasse a categoria dos civilizados, sem que isso significasse retornar à condição de seres primitivos.

Observação: Esta descrição teve como base o trecho do diário de viagem de Hércules Florence relacionado com a tribo Apiacá.

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